Aquele fim de semana negro, não só para a Fórmula 1, como para os Esportes a Motor, quando dois pilotos morreram na pista de Imola – o novato austríaco Roland Ratzenberg e o brasileiro tricampeão Ayrton Senna – deixou marcas profundas – em todos os sentidos, até para o bem -, já foi muito discutido, e nosso Blog já publicou um extenso artigo sobre isso.
Mas voltamos ao assunto agora para tratar de uma matéria, originalmente publicada no site da Revista Veja, da editora Abril, no ano de 1995, que trata das investigações sobre as causa do acidente que matou o piloto brasileiro.
O artigo é bem completo, e muito interessante, para o entendimento técnico-jurídico do caso. Leia o resumo mais abaixo:
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Inquérito da Justiça italiana mostra que emenda malfeita na coluna de direção foi a causa do acidente que matou Ayrton Senna
(artigo escrito por William Waack, para a Revista Veja)
O carro continuou na sua trajetória reta quando Ayrton Senna virou o volante para a esquerda na curva Tamburello, no autódromo de Imola, na Itália. A coluna de direção da Williams-Renault quebrou-se, e o piloto ficou sem nenhum controle sobre sua máquina. Tirou o pé do acelerador, brecou em seguida, mas não houve jeito. Faz um ano que Senna se estatelou contra o muro de concreto a 216 quilômetros por hora. A coluna de direção partiu-se devido ao trabalho inepto da equipe da Williams, responsável por um remendo grosseiro na peça, que não suportou, o esforço ao qual foi submetida.
Ao menos em teoria, Senna poderia ter escapado com vida, não fosse a sequência de fatalidades que se desencadeou a partir da peça mal soldada. Com a violência da batida, a suspensão dianteira direita quebrou-se. Um dos braços da suspensão, uma haste de metal longa e fina, ainda presa à roda, foi arremessada contra a cabeça do piloto como uma lança e perfurou seu capacete exatamente no ponto de junção da viseira. Além do buraco que lhe abriu na altura do supercílio, afundando o cérebro, o impacto da baste de metal, com a roda junto, provocou fraturas na base do crânio. As lesões foram mortais.
Para chegar a essas conclusões, durante dez dias VEJA entrevistou em Bolonha, na Itália, doze peritos. técnicos e advogados ligados à investigação oficial das causas do acidente de Ayrton Senna. VEJA pôde ver também o relatório final das investigações, ainda não divulgado, incluindo fotos e desenhos espalhados em três grandes volumes e numa pasta vermelha. Os investigadores judiciais italianos convocaram vários peritos renomados e os dividiram em três grandes grupos de trabalho. O primeiro grupo analisou as condições da pista; o segundo, as medidas de segurança do autódromo; o terceiro, a parte mecânica do carro.
O caminho que levou à hipótese de quebra da coluna de direção foi aberto peia experiência de um policial de trânsito que, se entendia pouco de Fórmula 1, estava acostumado a lidar todo ano com 3.000 acidentes na região de Bolonha: Marcello Gentile, chefe da Polizia Stradale. Dois dias depois do acidente, revendo as imagens da televisão, Gentile notou que o volante e um pedaço da coluna de direção – aquele cano comprido que transmite o movimento giratório do volante para as engrenagens que fazem as rodas mudar de trajetória – estavam ao lado do carro acidentado enquanto Senna era atendido pelos médicos. Só então ficou sabendo que, para sair rapidamente do carro, os pilotos podem remover o volante, mas nunca se desloca a coluna de direção. “Naquele instante não tive mais dúvida de que a causa do acidente teria de estar relacionada com aquela coluna de direção, partida de maneira tão limpa”, diz Gentile.
A comprovação da suspeita inicial foi feita por meio de exame da peça em um microscópio eletrônico, que mostrou sinais de “fadiga” no metal da haste da direção. Esse lado da investigação, a cargo de um ex-diretor de competição da Ferrari, Mauro Forghieri, e do presidente da Faculdade de Engenharia da Universidade de Bolonha, Enrico Lorenzini, avançou rapidamente. Menos de dois meses depois da morte, já havia testes de laboratório comprovando que a coluna de direção se quebrou antes da batida do carro contra o muro, e não depois. Os peritos, no entanto, aprofundaram a investigação, para provar que nenhuma outra causa poderia ter sido tão decisiva no acidente.
O estado do asfalto na curva Tamburello, uma das hipóteses iniciais para explicar o acidente, foi descartado depois que técnicos da polícia rodoviária e da Universidade de Bolonha colocaram algumas máquinas na pista de Imola, que permaneceu interditada até outubro. Realizadas com aparelhos ingleses, medições no local apontaram que a pista oferecia excelente aderência e não apresentava ondulação.
Os dados da telemetria foram conclusivos em dois outros pontos, relevantes para entender o comportamento do piloto nos instantes que precederam a batida: Senna aliviou o pé do acelerador, reduzindo sua pressão em cerca de 40%, quando nada havia à sua frente que pudesse justificar essa atitude. A seguir, pisou violentamente no freio, provocando urna desaceleração brutal, calculada pela própria Williams em cerca de 4 g. A freada reduziu a velocidade de 310 para 216 quilômetros por hora em 1 segundo e 3 décimos.
Frear numa curva na qual os pilotos costumavam passar em sexta marcha pisando ao máximo no acelerador significava que esse era o único, e desesperado, recurso de um profissional hábil como Senna para tentar escapar de uma situação de emergência. A constatação é reforçada pelas imagens de vídeo. Na câmara colocada dentro do carro, a mão de Senna tenta uma correção de trajetória para a esquerda, mas as rodas permanecem retas, perfeitamente alinhadas. Em outras palavras, o volante já não agia sobre o carro, e o breque era última escapatória.
Os peritos voltaram, então, à coluna de direção. Advogados da Williams ouvidos no inquérito admitiram que ela se quebrara, mas sustentaram que a coluna se rompeu quando o carro trombou no muro – foi decorrência do acidente, e não sua causa. Nessa hora, o testemunho dos especialistas foi decisivo. Eles explicaram que, quando um metal se rompe repentinamente, como no caso de um choque violento contra o muro, ele apresenta deformações em ângulos e formas característicos, facilmente verificáveis, através de microscópios.
Mas a ruptura da haste poderia ter sido provocada pelo processo de “fadiga do material”, expressão que se emprega quando um metal se rompe devido a solicitação ou esforço repetido. Se o rompimento é causado pela fadiga, há outro tipo de sinais característicos, as estrias. Essas marcas surgem a cada ciclo de solicitação, isto é, a cada vez que o metal é submetido a um tipo de esforço, como torção ou flexão. No caso da coluna de direção do carro de Senna, esses dois esforços ocorriam. A torção se dava quando ele virava o volante para manobrar o carro. E a flexão era produzida pela trepidação e vibração da Williams.
Colocada no microscópio eletrônico do Instituto de Metalurgia da Faculdade de Engenharia de Bolonha, a parte fraturada da coluna de direção do carro de Senna mostrou uma área com estrias de fadiga de 60%. “Esse método é usado em qualquer parte do mundo; do ponto de científico, não há como contestar os resultados”, diz um técnico que participou do exame de laboratório. No dia 28 de junho, outros peritos, incluindo um engenheiro da Williams, foram chamados ao Instituto de Metalurgia. Na tela do microscópio, comparável à de uma televisão pequena, surgiram as estrias. “O engenheiro da Williams calou a boca imediatamente: qualquer um se lembra das lições elementares do tempo da faculdade”, diz o técnico italiano. “Eu mesmo fiquei muito surpreendido com o que constatei, quando ouvia falar de Fórmula 1 pensava em tecnologia sofisticada, e o que vi não tinha nada disso.”
Mas como foi possível que uma coluna de direção gasta, “fatigada”, propensa a se partir, fosse instalada na FW16 de Senna? O erro começou a ser arquitetado nos primeiros testes do carro, no início de março, na França. Ao segurar o volante, as mãos de Senna raspavam na parte de fibra de carbono do cockpit. Havia duas alternativas para solucionar tal problema. A primeira, mais trabalhosa, era refazer o cockpit. A outra, aumentar o comprimento da coluna de direção, aproximando o volante do piloto em alguns centímetros. A Williams se decidiu pela segunda alternativa, mais rápida e fácil de executar. A coluna de direção foi cortada pouco antes do suporte que a fixa no cockpit. A maioria dos carros de Fórmula 1 tem colunas de direção com ligas de titânio, material extremamente leve e resistente, desenvolvido pela indústria aeroespacial. A Williams utilizava material menos nobre: aço aeronáutico, que atende às especificações técnicas, ainda que mais pesado que o titânio.
A alternativa adotada pela Williams também deixou de lado princípios básicos da física e metalurgia. Os mecânicos fizeram o que um encanador chama de “luva”, soldando-a numa das extremidades da coluna de direção já seccionada. O outro lado dessa luva, de diâmetro ligeiramente inferior ao da haste de direção, foi encaixado por dentro da coluna e soldado. Ocorre que a maior incidência de forças sempre se concentra na parte interna de um ângulo. Basta apoiar um garfo com força no prato para constatar onde ele dobra primeiro. Um ângulo reto surgiu quando foi feita a luva.
A barra rompeu-se exatamente onde, segundo os manuais. teria de romper: antes da solda, próxima ao ângulo reto da luva. Para que não restasse nenhuma dúvida, os investigadores pediram uma contraprova. Assim, a mesma peça foi encaminhada ao laboratório do Centro dell’Aeronautica Militare di Pratica di Mare, em Pornezia, próximo a Roma. Seu microscópio eletrônico apontou que 70% do setor ao redor do local de fratura apresentava as famosas estrias de fadiga. Os engenheiros fizeram ainda outro cálculo, o dos fatores de intensificação de esforço. A conclusão é clara: Senna nunca teria terminado a prova em Imola. Isso porque é a velocidade, e não o raio da curva, que estabelece o maior esforço sobre a direção. Quanto maior a velocidade, maior o esforço para tirar as rodas de sua trajetória. “Uma peça de metal submetida a esse tipo de esforço e com apenas 30% de sua superfície ainda em ordem não aguentaria mais tempo”, diz um dos peritos.
A combinação de indícios e exames permitiu aos peritos chegar ao veredicto: as estrias de fadiga na coluna de direção, a mão de Senna que vai para a esquerda enquanto as rodas permanecem retas, as marcas de frenagem e a violenta desaceleração mostram que o piloto sentiu que não controlava mais o carro. Só teve tempo de pisar no freio e reduzir uma marcha – ele na verdade se encontrava deitado dentro de um sarcófago sobre rodas, acoplado a um motor de 700 HP, e sem possibilidade de determinar sua direção.
Mesmo depois dos exames, a Williams continuou sustentando que a coluna de direção se rompeu depois, e não antes do choque. A equipe alega que não se pode provar num laboratório o segundo exato da quebra da peça. Portanto, se não está provado 100% que a peça se quebrou antes do acidente, não se pode excluir que ela se tenha partido depois do choque. A Williams apresentou simulações severas de testes de resistência feitos com a coluna de direção provando que ela resistiria às solicitações de esforço – mas eram peças nas especificações originais, e não a que foi remendada.
Os médicos legistas admitem que, mesmo com a velocidade com que foi jogado contra o muro, Senna ainda assim poderia ter sobrevivido. O carro formava um ângulo de 22 graus com o muro, o que consideram bom, pois o impacto não foi frontal. A fatalidade ocorreu no momento em que o braço da suspensão foi arremessado contra o piloto como uma lança. A força brutal do braço da suspensão, aliada ao peso da roda, jogou a cabeça do piloto para trás. O choque contra a proteção traseira do cockpit causou, segundo os médicos legistas, a fratura da base do crânio e de várias vértebras cervicais. A forma da haste de metal coincide exatamente com o tipo de buraco deixado na frente do capacete de Senna. A parte de trás do capacete apresenta uma grande rachadura circular, causada pelo golpe contra a proteção atrás do cockpit.
Logo que examinaram Senna, instantes após sua chegada ao hospital, os médicos italianos achavam que ele não poderia ter sobrevivido, em consequência da violenta desaceleração. O laudo dos legistas, apresentado em 7 de maio do ano passado (1994), apenas uma semana depois da tragédia, muda esse quadro. Não fosse a pancada do braço da suspensão em sua cabeça, Senna provavelmente teria escapado. Fora a série de traumatismos cranianos provocados pelo braço da suspensão, nenhum outro órgão vital do piloto apresentava ferimentos graves. O laudo dos legistas reforça também a tese da Williams, segundo a qual mesmo uma grave falha mecânica eludiria consequências fatais, não fosse a fatalidade de um braço de suspensão, acoplado a um pneu, voando em direção ao piloto e o atingindo no único ponto vulnerável do capacete.
O juiz Maurizio Passarini, encarregado da instrução do processo sobre a morte do piloto brasileiro, notificou judicialmente doze pessoas, cuja responsabilidade no acidente está sendo investigada. Entre os notificados estão o dono da equipe inglesa, Frank Williams e o projetista do carro, Patrick Head. Ao juiz cabem agora duas alternativas: arquiva o caso ou continua o processo, abrindo a via para que os eventuais culpados sejam incriminados.
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Lembrar que, ao final do longo e arrastado processo, todos os julgados foram declarados inocentes, numa decisão que por muito tempo foi comentada como totalmente equivocada, ante os laudos técnicos da polícia italiana, conforme os relatos acima.
Enfim!
5 comentários
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A solda da barra de direção é uma das principais teses, juntamente com a perda de contato dos pneus dianteiros com o solo em função de “aeroplanagem”
Uma vergonha. A verdade e que a Williams mato o Ayrton Senna na qual ele estava ajudando a desenvolver o carro. O erro dele foi ter saído da MacLaren e ido para o assassino da Williams
Mas esse “erro” dele de sair da McLaren pra ir para a Williams, não foi na verdade um erro. E sim a FIA, que mudou o regulamento tirando toda a vantagem dos carros da Williams, e tornando eles totalmente imprevisíveis, pois foram desenvolvidos para serem usados com a tecnologia que a FIA “tirou” com o regulamento novo. Quando houve essa mudança, Senna já havia assinado com a Williams, não tinha mais o que fazer
Parabéns pelo texto. Foi o único lugar que encontrei até agora que a situação foi explicada de maneira lúcida, com detalhes completos.
Perfeito o Laudo dos eng. da Universidad da Bolonha. No meu entendimento deveriam os eng. de escuderia colocar uma barra inteira, em vez de soldar duas partes. A economia custou a vida de Senna. Quem garante que as barras não tinham composições diferentes estruturais e a solda era incompatível
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